Formada em Biologia, jovem que enfrentou racismo e depressão, encontrou na moda a maior e melhor forma de alcançar seus sonhos e se expressar

 Marcela Freitas de Jesus, formada em Biologia, se encontrou na Moda. Depois de sofrer racismo desde a infância, pela cor de sua pele e sua forma física – chegou a pesar quase 150 kg - a jovem negra, de 27 anos, encontrou na moda a maior e melhor forma de alcançar seus sonhos, expressar suas raízes e encontrar a sua identidade. Formada em Biologia em março de 2021, em agosto do mesmo ano, depois de enfrentar novamente uma depressão, começou a cursar Moda, e agora lança sua marca WIZZY.

“Eu encontrei a Moda. No início entrei porque era algo criativo e que envolvia muito desenho e criação e eu gostava de coisas da indústria da beleza e de aparência, mas ainda no primeiro período eu tive a plena certeza de que havia tomado a melhor decisão da minha vida. A Moda me permitiu trabalhar, explorar e refletir sobre coisas que, a não estavam no escopo do que a Biologia me permitia, e foi ali que me encontrei como pessoa e como profissional.”

“Finalmente vi o quanto a minha história teve influência dessa indústria tão fundamental não só como mercado, mas como fenômeno social. E talvez seja por isso que quis criar a WIZZY. Como uma garota negra que nasceu no subúrbio do estado e que mesmo de longe o acompanhou, a cultura do streetwear e do streetstyle sempre foi importante e presente na minha vida. O funk, o samba, a música, sempre foram ferramentas e meios que ajudavam a me sentir bem e me conectar com as minhas origens. Tendo isso em mente, quando pensei em criar uma marca, soube desde a primeira vez que pensei sobre o assunto, que queria que ela fosse algo feito para quem eu queria ser quando era criança. Quem eu me restringi e evitei ser por achar que não era feito para mim, que não me pertencia, que era só um sonho a ser idealizado. Quis criar uma marca para enaltecer todas as coisas que tive que esconder para um dia tentar ser aceita. Criar uma marca que não tivesse medo de ser suburbana, parceira e real.”

“Devo admitir, WIZZY não era o primeiro nome da marca, mas quando fui procurar as coisas necessárias para realizar o registro do nome, me deparei com outra marca muito grande no Centro-Oeste e no Norte que possuía um nome muito parecido ao que eu havia escolhido. Fiquei meio desesperada. O nome anterior era perfeito pra homenagear toda a ideia de ser uma marca feita para quem a pequena Marcela que passava suas tardes correndo na rua queria ser. Fiquei muito mal e comecei a fazer o que sempre faço quando preciso de autoestima e ânimo, fui ouvir rap feminino. E entre as letras e cantorias, uma palavra me chamou a atenção: “feitiço”. Muitos associam elas inicialmente a coisas ruins, mas sabendo onde a palavra estava sendo usada, eu sabia que a ideia da letra, “meu feitiço te conquistou”, era algo que associava ao seu uso como gíria, que significa charme. E isso me levou a uma série de conjecturas que me fizeram pensar na palavra “wizzy”, que em inglês significa espirituoso, ou espirituosa. A ideia é sempre ressaltar que nossas peças são pensadas para ressaltar o encanto natural de nossas clientes e das suas origens, lembrá-las sempre de que elas podem ser quem elas quiserem independente de onde se encontram, de como se sintam. A WIZZY não foi criada para ser apenas mais uma marca de camisetas ou roupas, mas para mostrar que quem você é não a impede de ocupar lugares, nem de se importar e querer mostrar de onde veio. Queremos criar uma comunidade onde as pessoas se sintam sempre livre para apenas ser.”, declara.


 

Sobre Marcela Freitas de Jesus

 

Nascida em São Gonçalo, uma cidade na região metropolitana do Rio de Janeiro, desde pequena, aprendeu a triste realidade de que ser alguém que não se encaixa no padrão de beleza a faria ser tratada diferente fora da segurança de sua casa. A primeira vez que sofreu racismo, tinha seis anos. “A primeira vez que percebi que a cor da minha pele me tornava diferente das outras pessoas foi quando, durante a alfabetização, nenhuma das crianças se aproximava de mim. Por muito tempo, inclusive, acreditei que o problema era eu e tentava ao máximo conversar mais, me enturmar mais, o que não deu muito certo e acabou me levando ao isolamento em meio aos livros da biblioteca da escola, até que a única criança que falava comigo me disse com todas as letras que não podia mais brincar comigo porque eu era negra. Claro, na hora contei para a professora, confusa e irritada e, com o tempo e a ajuda de uma excelente educadora, que começou a me colocar de exemplo para todas as coisas na turma, a situação se solucionou. Mas o trauma não. Acredito que foi ali que comecei a notar como eu era e como me apresentava.” Explica.  

Na urgência de me tornar mais aceitável para as pessoas, ainda criança, pediu para sua mãe alisar o cabelo, que havia acabado de ter queda por tentativas de relaxamento. Por ser uma criança muito grande e estar acima do peso, Marcela tinha dificuldade de usar roupas de sessões infantis. “Minha relação com a aparência muitas vezes era complicada e difícil, mas sempre encontrei na leitura e nos estudos um refúgio da minha realidade. As histórias, a fantasia e o sonhar sempre me acompanharam de perto, inclusive quando me mudei de minha cidade natal para Rio das Ostras, na Região dos Lagos.”

Marcela relata que “O início dessa mudança foi muito difícil. Aos nove, quase dez anos, tive de sair da escola onde agora eu tinha amigos, dos parentes que eram meu apoio e suporte e da única realidade que eu conhecia. Tive depressão e engordei mais ainda, entrando em grau de obesidade ainda criança e encontrando apenas na escrita um alívio. Encontrar coisas agora que eu gostasse e me ajudasse a me sentir confortável, havia se tornado ainda mais complexo, e, aos nove anos, meu armário era composto unicamente por peças de roupa de adultos e eu começava a deixar minha aparência e a possibilidade de usar roupas mais de "menininha" de lado, aquilo não importava. Não me caberia também. E foi assim que entrei na adolescência. A concepção que tinha era de que o que eu usava não era tão importante e não mudava em nada minha vida, desde que focasse nos estudos. Mesmo que no fundo eu ainda encarasse as outras meninas, suas coisas, seu jeito e invejasse um pouco a liberdade que sentiam e como aquelas coisas cabiam e pareciam bem nelas. Mas não em mim. Nunca em mim.”

Aos quinze anos, Marcela entrou em depressão e acabou engordando muito mais, e foi na literatura que encontrou o remédio para lidar com seus sentimentos. Escreveu o livro A Legião, 376 páginas, Editora Novo Século - Talentos da Literatura Brasileira, tendo participado da Bienal do Livro Rio, em 2015. “Mesmo que eu escrevesse desde os nove, apenas aos quinze terminei de escrever meu primeiro livro e, aos dezessete, finalmente o publiquei, alguns meses antes de concluir o Ensino Médio. Ali foi a primeira vez que me senti confiante no que fazia e no que era capaz de fazer. O que coincidiu com a época onde me permiti verdadeiramente começar a explorar com maquiagem e cosplays e todo tipo de caracterização de personagens com meus amigos. Mesmo assim, escrever não era exatamente meu objetivo de carreira, então assim que terminei o Ensino Médio, ingressei no curso de Ciências Biológicas da UFRJ de Macaé. Foi transformador para mim.”

“Eu tinha muita dificuldade no curso em si, conforme os períodos foram passando e a faculdade potencializou muito a minha ansiedade por conta da diminuição do meu rendimento acadêmico, mas a Biologia, as pessoas e aquele lugar me deram uma liberdade que nem mesmo sabia que era capaz de experimentar. O ambiente acadêmico e social da casinha amarela, como chamávamos o campus da Biologia de Macaé, me permitiu conhecer mais sobre mim mesma, sobre o mundo e sobre as pessoas, além de experimentar quem eu era, quem eu gostaria de ser e como eu gostaria de me parecer. O primeiro passo foram as tranças. Minha relação complexa com meu cabelo desde criança pareceu sumir magicamente quando as conheci e até hoje, usar tranças coloridas e diferentes é parte essencial de como me expresso. Em seguida, foi com a forma como eu me vestia. Sei falar bem atualmente, mas, quando entrei na faculdade de Biologia, ainda tinha algumas dificuldades de socialização e só me permiti me abrir quando aceitei que eu era diferente e que me sentia bem sendo assim. Eu podia ser muito Rio das Ostras para São Gonçalo e muito São Gonçalo para Rio das Ostras, mas aquilo era parte de mim. Foi aí que deixei de ter medo de simplesmente ser.”

Na pandemia Marcela novamente teve depressão, e percebeu que o curso que antes achava que era seu sonho, não se encontrava mais. “Claro, eu amava todas as experiências que tive na Biologia e o quanto tudo aquilo me permitiu sonhar e simplesmente ser, mas a profissão em si... Bem... Me matava um pouco por dentro. A ciência exige um nível muito grande de imparcialidade e ceticismo para alguém que precisava de criatividade para se sentir bem. E foi aí que no último período de Biologia, decidi pegar o meu diploma e procurar um curso que me permitisse experimentar.”

 

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