Christiane Jatahy apresenta o espetáculo “A Hora do Lobo”
no Sesc Consolação, a partir do dia 22 de setembro
Inédita no país e sucesso no exterior, a peça propõe
um debate com o filme Dogville, de Lars von Trier
Foto: Magali Dougados |
A mais internacional das diretoras teatrais brasileiras na atualidade, Christiane Jatahy volta ao país – após cinco anos trabalhando na Europa – com o espetáculo “A Hora do Lobo”, em cartaz de 22 de setembro a 15 de outubro no Sesc Consolação. Grande sucesso de crítica e público no velho continente, a montagem se apropria da narrativa e das temáticas do longa-metragem Dogville (2003), de Lars Von Trier, para criar um diálogo com o filme, traçando um paralelo com o avanço da extrema direita, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. “A Hora do Lobo” é a primeira parte do projeto batizado pela dramaturga de “Trilogia do Horror”, peças criadas entre os anos de 2020 e 2022 que buscam dissecar algumas das estruturas endêmicas, políticas e sociais que levaram a sociedade a caminhar na borda do abismo.
“A trilogia surgiu porque se tornou urgente e necessário, para mim como artista, criar obras que fossem atravessadas pelo horror que eu estava sentindo e que estávamos vivendo durante os quatro anos do governo anterior. Não só no sentido de denúncia, mas também como uma reflexão sobre as estruturas que nos permitiram, enquanto sociedade, cair mais uma vez num regime de extrema direita, democraticamente eleito, trinta anos depois do fim da ditadura militar”, revela Christiane Jatahy, a primeira e única brasileira a conquistar o Leão de Ouro na Bienal de Veneza (2022) pelo conjunto de sua obra.
De acordo com a criadora, quando se pôs em risco a democracia e os direitos humanos no Brasil, ficou claro que sua arte – uma contínua exploração das fronteiras entre cinema e teatro, ficção e realidade, inércia e necessidade de mudança – faria parte das lutas que precisavam ser travadas. Nos últimos dez anos, mesmo trabalhando extensamente por toda a Europa, a grande maioria das produções da diretora têm alguma conexão com o seu país de nascença.
“Quando as pessoas me perguntam ‘onde é sua casa?’, eu sempre falo que é o Brasil. Eu moro no Brasil e o Brasil mora em mim. E isso se reflete em tudo que eu faço, não só porque são as minhas raízes, mas também porque é o que me move como artista. Eu diria que noventa por cento dos trabalhos que eu faço aqui na Europa têm relação com o Brasil, tanto tematicamente como estruturalmente, porque muitos dos meus colaboradores artísticos, técnicos, atores e atrizes são brasileiros. Teatro não se faz sozinho, a minha linguagem e a minha pesquisa são traçadas por muitas mãos e muitos encontros”, conta a diretora, que vive atualmente entre Paris e Rio de Janeiro.
Diferentemente do argumento do longa do cineasta dinamarquês, Graça, a personagem principal, é uma imigrante brasileira – interpretada por Julia Bernat, atriz e colaboradora recorrente nas montagens da encenadora ao longo de sua trajetória – que foge para a Europa motivada pelo cenário de intolerância que assola o país. No original, a protagonista vivida por Nicole Kidman é uma mulher perseguida por criminosos que busca refúgio na pequena cidade de Dogville e cuja permanência está condicionada à execução de duras tarefas para os seus moradores.
“Dogville me mobilizou muito quando o assisti. O filme me repulsa e me impressiona. É sobre a semente do mal que nasce do capitalismo e da exploração do outro até a desumanização”, analisa.
Na releitura de Jatahy, os personagens querem finalmente se assumir como uma sociedade mais equânime, que aceita o estrangeiro e aquilo que lhes é desconhecido. Então, se propõem a experiência – na qual Graça embarca – de refazer o filme ao vivo para provarem a si mesmos – e aos outros – que são capazes de se redimir dos erros de outrora.
O filme começa a ser invadido pelos fantasmas do passado e a investida vai se transformando em um laboratório humano, onde os personagens – ao seguirem o roteiro, a única coisa que têm como trilho – percebem estar repetindo os mesmos desvios. Criado na Comédie de Genève com um elenco misto de atores franceses, suíços e brasileiros, “A Hora do Lobo” trata do fascismo que se apresenta inicialmente de forma imperceptível até tornar-se público e inexorável.
“É um reflexo do que aconteceu com o Brasil, mas que também está acontecendo em várias partes do mundo. O espetáculo é também sobre como o fascismo pode nascer nas relações familiares, intimas, entre pessoas próximas, e ir se espalhando até não poder ser mais contido”, reflete.
Marca registrada da diretora, a fusão do teatro com cinema nas suas produções é, mais uma vez, uma das forças motrizes do espetáculo que estreou no Festival de Avignon, em junho de 2021.
“Há muitos anos eu faço uma pesquisa da fricção entre teatro e cinema, e trabalhar com Dogville é realizar o outro lado da moeda do que Lars von Trier fez. Ele leva o jogo teatral brechtiano para o cinema, enquanto eu faço o caminho inverso, eu trabalho com a desconstrução do filme para criar a obra teatral”, conta. “Também tem uma relação de tempos na obra; no teatro o público está vendo o presente se construir, tudo está suscetível a mudanças. Existe a possibilidade de não se repetir, ao passo que o cinema é para sempre. A dramaturgia da peça também trata dessa tensão entre o passado e o presente. Entre a memória e o futuro.”
O telão é posicionado no fundo do palco e são os próprios atores que manipulam a câmera como parte da experiência do filme que realizam ao vivo. A montagem ocorre em tempo real, misturando as imagens feitas na hora com outras pré-filmadas.
“Tudo é decupado e roteirizado, mas, como no teatro trabalhamos com o inesperado, precisávamos que a edição fosse viva. A edição ao vivo é realizada pelo meu diretor de fotografia e editor, Paulo Camacho, que ao estar em cena acaba fazendo parte da ficção”, explica a diretora. “Tem uma relação com tridimensionalidade. Filmamos muita coisa no próprio espaço do cenário porque a ideia é criar uma tensão, como se fosse um pesadelo. Como é que pode esse personagem estar no cinema, se eu estou vendo o mesmo cenário e ele não está no teatro?”, provoca a diretora.
A edição ao vivo é um dispositivo muito importante no trabalho da diretora, bem como a dramaturgia do uso da câmera e das ferramentas cinematográficas.
“A pesquisa do cinema no teatro não é só sobre o uso da projeção em cena. No espetáculo ‘E se Elas Fossem para Moscou?’, por exemplo, as câmeras estão no teatro e o filme está sendo projetado no cinema. A cada espetáculo novos dispositivos dramatúrgicos e
O título da versão europeia da peça é “Entre Chien et Loup”, uma expressão francesa que na tradução literal significa “entre o cão e o lobo” e representa o momento do pôr do sol, do crepúsculo, quando não se consegue discernir o animal domesticado do selvagem.
“É quando perdemos a clareza do olhar. É exatamente o que eu tento fazer com a linguagem cinematográfica na peça.” comenta Jatahy.
A Trilogia do Horror
Na sequência de “A Hora do Lobo”, a segunda peça da trilogia, “Antes que o Céu Caia” conecta “Macbeth”, de Shakespeare, com “A Queda do Céu” de Davi Kopenawa e Bruce Albert, além de se inspirar em trechos de uma reunião em abril de 2020. A montagem, criada no Schauspielhaus Zurich, em outubro de 2021, aborda a violência da masculinidade tóxica, o poder corrosivo do patriarcado e a sua agressão intrínseca contra o feminino em todas as suas emanações – mulheres, crianças e, finalmente, a natureza e a própria terra.
Criada a partir do livro “Torto Arado”, o romance aclamado de Itamar Vieira Junior, “Depois do Silêncio” conclui a trilogia. A peça interliga a ficção inquietante – narrada por meio das vozes de três mulheres no contexto da luta da sua comunidade por terra, liberdade e identidade – com “Cabra Marcado Para Morrer,” o famoso documentário de Eduardo Coutinho, que conta a história de João Pedro Teixeira, líder sindicalista rural, assassinado em 1962, e da sua companheira de luta e de vida, Elizabeth Teixeira.
As vozes autorais das atrizes Juliana França, Gal Pereira, Caju Bezerra e Lian Gaia e do músico Aduni Guedes se juntam a um documentário/ficção produzido pela diretora na Chapada Diamantina, as pessoas que inspiraram a criação do livro de Itamar e o filme de Coutinho. O espetáculo, que estreou em Viena no Festival Wiener Festwochen em 2022, é um relato íntimo de um passado ainda sem reparação que se repete nos horrores do Brasil até os dias atuais. Hoje a peça percorre a Europa e os Estados Unidos em turnê internacional.
Ópera “Nabucco”, a montagem de “Hamlet” e projetos no horizonte
Com a agenda tomada na Europa até o fim do primeiro semestre de 2024, com espetáculos antigos, recentes e inéditos, Christiane Jatahy se aventurou no universo das óperas. Em junho deste ano, dirigiu uma montagem de “Nabucco”, de Giuseppe Verdi, que estreou sob aplausos no Grand Théâtr
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