ESTREIA | 'Ensaio para o Terror' aborda a branquitude ou o terror da violência racial entre nós | Dramaturgia e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo

 Espetáculo Ensaio sobre o Terror adapta conto icônico de Machado de Assis para falar sobre violência racial

 

José Fernando Peixoto de Azevedo evoca a história de linchamento presente em “Pai Contra Mãe” para retratar uma sociedade regida por um inconsciente escravocrata

Foto de: Fredo Peixoto

Em sua busca por evidenciar o terror da violência racial presente na sociedade brasileira, o diretor e dramaturgo José Fernando Peixoto de Azevedo vem há anos trabalhando com o conto “Pai Contra Mãe”, publicado por Machado de Assis, em 1906. Assim, nasceu o solo Ensaio sobre o Terror, que faz sua estreia no Teatro Aliança Francesa, em São Paulo, no dia 28 de julho de 2023 e segue em temporada até 10 de setembro, com sessões às sextas e sábados, às 20h30, e, aos domingos, às 18h30.

 

A cena lida com o modo como Machado aborda o espancamento e a captura de uma mulher negra na rua. O público tem notícias de um casal branco, muito branco, como indicam seus nomes - Cândido e Clara Neves. Os dois são pobres e, por isso, Cândido vive de pequenos bicos. Um deles é o de caçar escravizados fugidos.

 

O casal, quando engravida, tomado pela miséria, precisa deixar o filho na Roda dos Enjeitados. Ao fazer este caminho pesaroso rumo à entrega do bebê, Cândido reconhece na rua uma mulher negra que identifica em anúncios de fuga e decide capturá-la. No entanto, ela está grávida e, ainda assim, é espancada e devolvida ao “dono”. A partir desta cena de rua, que culmina no linchamento de uma mulher negra, o espetáculo se desdobra.

 

Sociedade estruturada no racismo

“Há duas frases nesse texto machadiano que são uma síntese da nossa sociedade atual. Enquanto a personagem feminina apanha, o narrador comenta: ‘Todos que estavam à volta olhavam, compreendiam o que estava acontecendo e, naturalmente, não faziam nada’. E, quando ela perde o bebê por conta das agressões e Cândido recebe a sua recompensa financeira, o narrador relata: ‘Bateu-lhe o coração. Nem todas as crianças vingam’”, conta o encenador.

 

O conto de Machado discute, de forma pioneira, a violência racial na sociedade brasileira. Até hoje, mais de um século depois, o texto é usado para discutir os termos da racialidade no país.

 

Para Azevedo, Ensaio Sobre o Terror elabora o sentido ideológico, falseador do que chamam cordialidade entre nós, evidencia o sentido da cordialidade no Brasil. Machado reflete sobre o modo como, um homem branco e pobre, reduzido à sua miséria e ignorância, imagina salvar-se a partir do único aspecto que o difere, nessa sociedade, de uma pessoa “escravizável”: a cor de sua pele. É nesse contexto que aparece o terror. “A violência racial gera esse sentimento de horror ao mesmo tempo em que há um olhar que naturaliza essa brutalidade”, argumenta. Por isso, a escolha de trazer o foco para a branquitude na cena, evidenciando o olhar que naturaliza o racismo.

 

O público sente toda essa tensão por meio de procedimentos típicos do suspense, voltando ao cinema, como tem ocorrido nos trabalhos do diretor, com a presença de uma câmera em cena, que desliza entre o espaço de cena e outros planos, dentro e fora do teatro, jogando com tensões que dão a ver um corpo assombrado por uma ameaça que supostamente o cerca e observa. A música, executada ao vivo por um pianista, também contribui para a criação desse clima.

 

Rodrigo Scarpelli é o ensaísta em cena, jogando com materiais que deslizam entre o conto de Machado e a exposição dos ossos brancos do racismo à brasileira. No jogo com a câmera e o piano, o ator mobiliza a palavra e o espaço para dar a ver a fisionomia desse fantasma que assombra e toma corpos.

 

Conforme a narrativa avança, com o coração na boca, fica evidente algo daquela cordialidade sempre reiterada: o mesmo coração que bate pelo filho, mata em nome do pai. O terror não está fora, é ele a assombração. “Para o racismo existir, é preciso que um branco apareça na cena, aja, e que outros brancos naturalizem seu gesto”, defende Azevedo. "Em Cândido há algo de um brasileiro médio, solto nas ruas, movido pelo ressentimento e um ódio a si mesmo, expresso em práticas de destruição e ódio a tudo aquilo que identifica como um espelho inaceitável".

 

Sinopse

Uma peça-ensaio sobre a branquitude ou o terror da violência racial entre nós. Numa cena de rua, o linchamento emerge como rito e expressão de uma dessolidariedade estrutural e estruturante, assombrando uma sociedade regida por um inconsciente escravocrata. No conto, a trajetória de um homem branco livre e pobre, numa sociedade em que o único dado que garante seu estatuto jurídico de livre, diferindo-o de uma pessoa escravizável, estava na cor de sua pele. Em cena, o terror emerge dando a ver o teor próprio da violência racial, em deslizamentos de linguagem entre o cinema e a música.


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Sobre José Fernando Peixoto de Azevedo

José Fernando Peixoto de Azevedo (São Paulo, SP, 1974). Doutor em filosofia pela USP, é pesquisador, dramaturgo e diretor de teatro e filmes, professor da Escola de Arte Dramática (EAD) e do Programa de pós-graduação em artes cênicas, ambos da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde também colaborou no Curso Superior do Audiovisual do departamento de Cinema, Rádio e Televisão. Fundou em 1997 o Teatro dos Narradores, onde realizou, entre outros espetáculos, “Cidade vodu” (2016) e “Cidade fim, cidade coro, cidade reverso” (2011), e colabora como diretor e dramaturgo com o grupo Os Crespos. Dirigiu recentemente “Um inimigo do povo” (2022), “As mãos sujas” (2019), “Navalha na carne negra” (2018). Publicou “Eu, um crioulo” (editora n-1, 2018) e organizou “Próximo ato: teatro de grupo” (Itaú Cultural, 2011), com Antônio Araújo e Maria Tendlau, além de artigos e peças em revistas e livros, no Brasil, EUA, Alemanha e Espanha. Tem desenvolvido trabalhos também em Berlim. É coordenador da coleção Encruzilhada da Cobogó. Atualmente é vice-diretor do Teatro da Universidade de São Paulo, do qual assumirá a direção em Agosto deste ano.

 

Ficha técnica

A partir do texto Pai Contra Mãe, de Machado de Assis

Dramaturgia e direção: José Fernando Peixoto de Azevedo

Atuação: Rodrigo Scarpelli

Câmera em cena e edição de imagem: Fredo Peixoto

Trilha e direção musical: Abraão Kimberley e Victor Mota

Colaboração em processo: Thainá Muniz

Apoio Técnico (Câmera e vídeo): André Voulgaris e Alex Brito

Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Carol Zeferino

Produção: Corpo Rastreado

 

Serviço
Ensaio Sobre o Terror

Data: 28 de julho a 10 de setembro de 2023

Horário: sextas e sábados, às 20h30, e aos domingos, às 18h30

Teatro Aliança Francesa - Sala LAB

Endereço: Rua General Jardim, 182 - Vila Buarque

Ingressos: R$60 (inteira) e R$ 30 (meia)

Gênero: terror | Lotação: 40 lugares | Duração: 80 minutos

Acessibilidade: elevador

 

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