Maior cidade escravista das Américas, o Rio de Janeiro foi o
palco da assinatura da Lei Áurea, diploma legal que extinguiu a escravidão no
Brasil. Abolir o trabalho escravo, porém, não foi suficiente para promover as
mudanças tão desejadas por todos nós. Abandonados pelo Império, continuamos sem
condições para uma existência decente. Libertos, tornamo-nos prisioneiros da
miséria nos cortiços, nas ruas, nos trabalhos precários e na ausência de
direitos humanos e sociais básicos. Discriminados e marginalizados, sem
cidadania, sem alternativas para uma vida digna, fomos lançados à nossa própria
sorte. Excluídos – no dia seguinte, na década seguinte, no século seguinte –, vivemos,
até hoje, sufocados.
Hoje, ser preto no
Rio de Janeiro e no Brasil (país que tem a segunda maior população preta no
mundo) é ter que lutar diariamente por respeito. Lutar para não ceder nem
sucumbir à segregação promovida pela sociedade e pelo Estado. É recusar os
abusos e a submissão pela ausência de políticas públicas que poderiam promover
melhores condições de vida. É não se deixar enganar pela pseudo “democracia
racial”, sempre camuflada por hipocrisia, eufemismos ou subterfúgios mal
disfarçados.
Aqui, ser preto
é, acima de tudo, um ato de RESISTÊNCIA.
E resistir é ter
nossa história, antes negada e silenciada, ressignificada e recontada no
carnaval, lugar de alegria, mas também de diálogo com o mundo. Ao som dos
tambores ancestrais, o Salgueiro foi pioneiro na introdução da temática
africana nas escolas de samba. Seguiu na contramão da narrativa “oficial” do
país e deu vez e voz aos personagens, heróis e protagonistas pretos. Como um Griot,
transmitiu ricas histórias por meio de enredos que revelam a participação da
escola no processo de resistência cultural e de luta contra o racismo
institucional.
Resistir é plantar um legado nos “chãos” do Rio de Janeiro.
Criamos Quilombos, lugares de resistência e insurgência negra, com estrutura
politica, econômica e social africana. Revivemos a história nas marcas deixadas
na Pequena África, região que se destaca como lugar de acolhimento e também por
personagens como as tias baianas festeiras da Praça XI, cozinheiras e Mães de Santo
celebradas até hoje pela fantasia e pelo rodopio que as nossas Alas de Baianas
exibem. Foram elas que formaram o espaço sociocultural do samba, entendido como
extensão dos terreiros de Candomblé.
Resistir é professar nossa fé. Por ela nos unimos nas
irmandades religiosas que faziam filantropia por justiça social. Construímos os
terreiros de Candomblé, templos que são uma reinvenção do macro universo
cultural e religioso trazido do continente africano. Desenvolvemos o Culto
Omolokô e criamos a Umbanda, religião afro-brasileira surgida no Rio de
Janeiro, que sincretiza elementos do Candomblé, do Espiritismo e do Catolicismo.
Resistir é expressar nossa cultura para manter a continuidade
de valores civilizatórios. Com a benção dos orixás, entramos na cozinha, espaço
de saber, para alimentar o corpo e a alma. Para transformar alimentos, hábitos
e a própria culinária brasileira. Ao som dos atabaques, “compramos o jogo” nas
rodas de capoeira e dançamos jongo ou caxambu. Pisamos nos gramados para
expulsar os cabelos esticados e o pó-de-arroz que “disfarçavam” a cor da nossa
pele. Brilhamos nas passarelas e nas ruas com as formas, símbolos, cores e
texturas de nossa moda.
Resistir é fazer arte. Inquietos por
representatividade e pela visibilidade que insistem em nos sonegar, criamos
nossas próprias narrativas e espaços nas artes cênicas, como o Teatro
Experimental do Negro. Assumimos nosso protagonismo e nos fizemos enxergar
também por meio da literatura, da dança, das artes plásticas. Espalhamos para o
mundo a vocação artística que reside em nós.
Resistir é festejar. É revelar nossa maneira de ser por meio
das festas, do modo de celebrar a vida, do entusiasmo que propicia o resgate de
nossa identidade e afirmação existencial. Desde o chorinho na Festa da Penha,
passando pelas escolas de samba, afoxés e blocos afro. Pelo pagode à sombra da
tamarineira, pelo funk carioca e pelo charmoso baile sob o viaduto de
Madureira.
Resistir é existir.
É continuar a reverberar a coragem dos nossos heróis contemporâneos
de pele preta.
É saber que somos frutos de uma mesma raiz de igualdade, fé,
esperança, arte e vida.
É crer que nenhuma luta foi em vão. Que nenhuma luta será em
vão.
É persistir no sonho de igualdade para que ele não seja
silenciado.
É entender que, juntos, em cada passo e em cada pequena
mudança, seguiremos adiante.
E é ter certeza que no dia em que fizermos cair todas as
máscaras da discriminação, conseguiremos, enfim, respirar.
Autoria e curadoria: Dra. Helena
Theodoro
Carnavalesco: Alex de Souza
Concepção: Eduardo Pinto e Marcelo Pires
(Diretoria Cultural)
Texto: Paulo Barros
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